Mães e a xícara de chá

Então tá, eu finalmente vou falar sobre a minha relação horrorosa com a minha mãe;
Uma coisa que eu gostaria de evitar, e não deu. E isso pode ser aproveitado em uma teoria que tenho lido sobre esses dias, meio que convergir nisso tudo até chegar a algumas conclusões é melhor do que só ficar reclamando e sentindo pena de toda a situação.

Primeiramente, as coisas que eu tenho lido: sobre ser avó. Avô ou avó, mas mais especificamente sobre ser avó já que é a principal função nesse aspecto de família. As mulheres sendo a base da instituição familiar.
E o quanto isso é desastroso.
Veja bem, eu venho de uma família em que muito se vê uma falta de entendimento e não se reconhece o afeto em ações. Mesmo, não somos pessoas de beijinhos e abraços. E eu não sei como é em outras famílias, já que ao meu ver somos completamente comuns, com problemas como outras, mas que se perguntar, reafirmamos amor aos nossos.
E essa é uma questão complicada, eu vejo hoje o quanto isso é mentiroso. E eu vou tentar não usar a palavra hipocrisia aqui porque é uma palavra que pode e vai ser usada contra mim em alguma hora.
Mas é isso, nós não demonstramos afetos, grandes amores, e o normal é sempre estarmos atribuindo culpas e metendo os dedos nas feridas uns dos outros, como qualquer família. Nós não somos daquelas violentas e que falam mal de você na sua cara, ou usam palavras de baixo prestígio, é isso o que quero dizer.

Alguns meses atrás nós perdemos o meu tio. Ele morreu po consequencia de alcoolismo, e mesmo tendo passado um bom tempo limpo, e até que tenhamos esperado a piora de sua saúde, voltou a beber e faleceu meses depois causando uma grande dor a todo mundo.
Lembro que eu tinha tentado levar a família a uma conversa franca sobre o que estávamos fazendo com nós mesmos e ele foi a primeira pessoa a apoiar. A reunião familiar foi um fracasso, nada do que eu tinha esperado, planejado. Eu também estava esperando uma família amorosa e compreensiva que a minha epifania e loucura esperançosa de 2013 não me deixou ver que não era o que tínhamos pra trabalhar. Ninguém acredita no quanto poderia ser amado nessa família. E eu comecei a perceber o tanto de que a ideia de amor incondicional falado repetidamente nas mídias e reproduzido no meio comum, não existe na realidade, é um conto de fadas. Mas eu esqueci. Eu tenho memória seletiva, reconheço;

Logo após esse tio morrer, a vida familiar ficou muito difícil. Eram muitas brigas, picuinhas, intrigas, e o lugar que eu me refugiava sempre que eu não podia mais aguentar a minha mãe se tornou um local ainda mais pesado. A casa da minha avó sempre foi meu porto seguro. Desde pequena, quando eu ficava ansiosa sobre as inseguranças no casamento dos meus pais eu tentava pensar que pelo menos eu poderia ir viver com ela, e com as minhas primas que já viviam lá. Mesmo quando a minha avó começou a se mudar, e também que eu nunca tenha passado por uma mudança de casa e sempre temer mudanças, físicas ou não, eu sempre sentir que onde a minha avó estivesse, seria um lar. E é uma coisa complicada quando eu penso na casa em que eu moro a mais de vinte anos. Eu não penso ela como um lar de verdade. Eu penso nela como uma gaveta. E ela me guarda. Meu lar é a minha avó;

Embora tenha acontecido diversos desdobramentos quanto às complicações que se seguiram, as coisas voltaram ao estável recentemente. Uma morte na família causa um desequilíbrio enorme nas relações, de verdade. E até antes dela eu sentia muito isso, sempre senti a desarmonia. Depois de almoços em família, ou antes mesmo, o clima às vezes é tão pesado que me baixa a pressão. Eu me sinto fraca (e ainda ser chamada de preguiçosa, dorminhoca, etc., coisa que minha família adora apontar em qualquer um);

Alguns meses atrás eu comecei terapia e larguei um pouco depois. Eu larguei porque eu achei uma perda de tempo analisar coisas que no fundo eu já sei. Assim mesmo, tentei levar minha mãe, fazer terapia familiar, ou ao menos incentivá-la a começar a própria terapia. Para alguém formada em psicologia ela é bem relutante a fazer o mesmo. Eu a levei pra uma sessão. Não houve muita conversa, houve uma troca de acusações, e como eu moro com ela, ela não fez feira por quase duas semanas. Tentar (me matar) me deixar com fome foi pra mim uma confirmação de algo que eu já sabia, mas relutava em acreditar. Essa mulher não me ama. E eu acho que talvez, um dia, ela tenha tentado. Tentado duro. E não rolou, não era o que tinha de ser. Essa coisa de forçar os sentimentos a acontecerem quase nunca funcionam, não é?! Ela chegou a essa conclusão mais cedo que eu. E tudo bem. Eu também não sou a pessoa mais legal, melhor filha, nem de longe. Eu ignoro e eu sobrevivo desse jeito.
E com essa conclusão eu encerrei as visitas à minha psicóloga. Quando ela me perguntou o que houve depois ela (a psicóloga) olhou pra mim sem muita esperança. No fim, resultado foi que eu soube o que precisava saber e soube que não tinha como melhorar conversando. Talvez na hora da morte ela me perdoe por existir, eu pensei.

Numa das vezes que eu parei pra observar isso eu olhei pra minha avó e vi ela sendo com as minhas primas e sendo o mesmo que ela foi pra mim. E eu não consegui entender porque minha mãe a acusa de ser o mesmo que ela é e sempre foi pra mim. Alguém fria. Essa não é a minha avó. Não é a senhorinha que ama dar comida pra qualquer pessoa, que cuidou de todos os netos que pode, que grita e é estressada, mas quem não seria se tivesse a vida dela?! Eu não consigo imaginar a minha avó sendo a pessoa que a minha mãe é para a minha filha. Ela que fala para os outros com o maior orgulho dela, como se fosse algo importante, mas fala o tempo inteiro que não a suporta, que queria que ela fosse embora. Que deseja que ela, nem eu tivéssemos nunca existido. Eu quando disse que estava grávida a minha avó me abraçou e foi a única vez que eu senti amor, amor em forma de toque, naquele momento tão difícil e que eu estava tão perdida e decepcionada comigo que eu falei morta de vergonha. A minha mãe não falou comigo por meses. Um abraço que eu recebi foi porque eu pedi. Então, como ela pode acusar uma senhora que sempre me deu o que ela nunca teve capacidade de me dar?

Mas a questão é que eu nunca quis realmente odiá-la de volta. Ainda que acreditando muito em reciprocidade, se me ataca eu te ataco de volta, eu nunca quis ter um relacionamento tão ruim a ponto de eu acreditar que nunca poderia ser consertado.
Eu consegui abrir meus olhos pra mim mesma essa última semana. E pra como perdão nunca mesmo vai rolar aqui.
Eu a odeio. E mesmo que eu já tenha proferido isso muitas vezes, eu sempre pensei nisso como algo temporário. Eu a odiava naquela hora, mas na outra já estaria super bem, eu esqueceria. Eu sempre fui boa em esquecer e bloquear as coisas ruins e aproveitar as boas. Não só com ela. Com tudo e todo mundo.
A situação dessa semana é que ela parece estar tentando me machucar. Sem necessidade. Eu estou quieta. Nunca faço questão de muito. Nunca peço nada. Mas ainda assim ela está tentando me empurrando pra uma borda de raiva e ansiedade que eu não quero cair.
Não posso cair, já tive uma crise de pânico no ano passado (desencadeado por uma discussão besta com ela, foi um acúmulo de muitas coisas), e se eu tiver de novo agora vai ser completamente por razão de que ela me quer fora da vida, e mais complicado, da casa dela.
A vida, em tese, eu já estou fora. Ela me convida às vezes para algo em que ela precisa de mim pra alguma coisa, e eu meio que estou bem sendo um tipo de babá da minha própria filha. Respiro fundo e sigo a vida.
Eu nunca a convido pra minha, não é necessário. Ela não faz parte dela desde que a minha filha nasceu. Até a mais tempo. Em verdade, desde que adoeci. Tive depressão boa parte da minha adolescência e começou a aflorar dali rixas, ressentimentos. Isso foi falado naquela sessão de  horror também.
 Não gostamos das mesmas coisas, estamos em níveis diferentes em todos os níveis possíveis, e por isso não nos entendemos em nada.
Ela fala água, eu falo vinho. Ou óleo. Não nos misturamos.
E agora não é só mais que não nos entendemos, nós não mais suportamos essa relação que é impossível ser desfeita. Eu estou falhando em fingir que o ódio não existe. Fingir que está tudo bem quando não está nem é mais problema pra mim quando eu não posso soltar isso com ninguém. O problema é que eu sinto vontade de fazer coisas indignas de mim. Passa coisas na minha mente que é eu sinto ser essencialmente ruins. E isso é uma coisa que ela sempre me chamou, entre outras coisas, e que eu não queria dar o braço a torcer e ser. Eu não queria ser ruim, mas acabo sendo.

Estou engolindo um veneno esperando que o outro morra, como dizia aquela música. Eu olhei ao meu redor para reconstruir o meu castelo caídoPra viver de bons momentos sem ter que ter os olhos escondidosJá fiz até um testamento que não tem nada, nada, nada escritoJá que a minha maior herança é a que eu vou levar comigoPra evoluir, depois que o terror passarSe eu não suportar talvez eu peça ajuda pra voltarDe um lugar da onde despenquei feito um anjo que morreu de raivaNa queda eu me despedacei mas eu já me permito mudarEsse meu ódio é... Meu ódio é...O veneno que eu tomo querendo que o outro morra

E musicalmente falando, mudei de Numb do Linkin Park, que eu sempre pensei ser a "nossa música tema" para essa da banda Luxúria. Essa e Babylon da SZA; Talvez seja bom que tenha mudado. Dado ao final de quem cantava, eu posso dizer que não escutar mais Numb seria uma ótima ideia.

Eu existo. E mesmo sendo ruim tanto pra ela quanto pra mim, o fato dela ser minha mãe não pode ser mudado. A questão é que eu finalmente parei de querer qualquer coisa disso. Nem dar nem receber. Eu quero ignorar tudo isso completamente.

Pra tudo não ficar um texto muito "olha que triste, coitadinha de mim", eu vou escrever sobre outras coisas também. Eu não acho que ser mãe foi o melhor trabalho dos meus avós maternos, e eu digo isso porque dos seis, pouquíssimos desenvolveram amor próprio ou amor por outros seres humanos a ponto de criar bem filhos. E é meio por isso que eles tiveram que tomar conta dos netos. Eles tiveram de fazer o trabalho de novo;
 E eles fizeram/fazem um trabalho melhor com relação à segunda geração mesmo que não entendam metade do que passamos. Talvez seja por isso, eles não entendem bem, logo ficam mais na defensiva. Mas tem as questões de que avós sabem amar melhor. E não sou eu que digo isso. Muitas pessoas aliás, minha própria avó. Ela dizia que avó não precisava educar, como esse era o papel da mãe. Mesmo que isso não importe porque ela fez melhor trabalho criando e educando os filhos que não eram dela.
É complicado isso, porque talvez a minha filha não tenha o mesmo com a avó dela. Eu não quero isso. Eu deixo hoje porque apesar o que ela me faz, minha mãe paga as contas. No momento em que nem assim ela demonstrar que se importa se eu vivo ou morro, não quero ela levando minha filha como se fosse um troféu por aí mesmo que todo o trabalho de criá-la e dar amor seja meu. E eu sou bastante orgulhosa quanto à minha filha. Eu sei quem eu sou, o que ela é e o quanto eu penso e trabalho com ela pra que ela seja melhor que nós duas. Eu não tenho muitas esperanças de ser mais amorosa do que as mulheres da minha família foram, só queria que ela tivesse a auto-estima alta que nenhuma teve, esse é meu objetivo quando eu educo.
Afinal aprendi e evoluí com isso, não com ideias irreais sobre amor de mãe incondicional, nem carinho, nem reciprocidade afetiva.
E por fim, mães e avós são mulheres, elas são criadas, e isso em qualquer geração, para serem duras, competitivas umas com as outras. Nada pode remendar essa dívida. Nem o romantizado amor de mãe. Eu já falei aqui de como isso pode ser uma farsa, de como isso é uma construção social prejudicial, como isso limita a vida de mulheres, como a maternidade aprisiona, nós, seres humanos super diferentes umas das outras, em um molde inalcançável de perfeição e divindades.

Ao contrário do que a minha mãe pensa, eu não queria que ela fosse presa (na cabeça dela, ela era), nunca quis que ela fosse infeliz, ou se sentisse culpada. Quero que ela saia, que faça amigos, que case novamente. Eu fui a primeira a apoiar, mesmo que com meu jeito distante, a decisão dela de terminar o casamento com o meu pai, embora questione às vezes por que, mas acontece. Ninguém deveria ficar presa num relacionamento infeliz, como minha avó foi. Eu entendo que ela queira ser outra pessoa depois de passar a vida inteira sendo alguém que ela não gostava.
Mas entendo hoje que nunca se tratou dela, do meu pai, ou de situações. Era eu.
Eu era o incômodo da vida dela. Dói? Um pouco. Mas é esclarecedor, mesmo sem nenhuma chance de melhorar. Eu sou filha. Minha filha é neta. Imutável.

Daí eu começo a perceber e entender a teoria da xícara em Hannibal; que talvez explique também porque faz anos que essa série terminou e eu ainda fico lembrando e alimentando a minha obsessão por todos os seus diálogos fascinantes.


O perdão é grande demais e difícil para somente uma pessoa. É preciso de duas pessoas: o traído e o traidor.” — DU MAURIER, Bedelia
 Uma vez que a xícara se parte não tem como ser consertada. A não ser por uma viagem no tempo. Minha mãe sempre será pra mim uma pessoa horrível. Ela é uma pessoa não confiável, que molda as próprias ideias de acordo que lhe convém. Ela não é diferente de qualquer político corrupto, ou qualquer vilão de anime, ela não é alguém o oposto do que ela acusa tantas vezes de que eu seja, egoísta. E isso não mudou, não é porque ela é uma pessoa diferente hoje. É hoje o que sempre foi, o que sempre quis ser. E qualquer esperança minha que ela pudesse me amar um dia não é mais possível. Porque eu não sou assim.

Talvez eu não possa perdoar, assim como ela passou a vida toda sem perdoar a mãe. Talvez esse seja o ciclo e não possa ser vencido.
Essa imagem do Hannibal é quando ele sabe que o Will está doente, mas fica vendo ele se incriminar e duvidar de si mesmo pois é conveniente a ele. Não dá pra dizer que não é o mesmo aqui em casa.

Mas isso é pra outro post que eu guardei e também me pergunto se irei postar.
Acho que vou ficar bem. Hannibal diz ao Franklyn que se ele não fosse neurótico ele seria algo bem pior. E eu sou neurótica e é bom que não dê pra passar disso.
E daí me vem outro problema. Essa relação de amor com a minha avó vai continuar? Anne vai ter uma avó melhor do que pessoa detestável que eu vejo agora? Ela vai continuar tentando levar crédito na criação que eu dou à minha filha? Eu estou vendo qualidades de menos na minha mãe para que eu esteja nessa paranóia meio Xuxa "você não merece falar comigo nem com meu anjo"?! Talvez a segunda chance faça ela ser melhor, ou o ódio dela será transferido? 


Talvez, os protegidos de Joaquim e Ana já tenham notado que, tendo sido educados com regras duríssimas, elas não são a garantia da felicidade e do sucesso. Pode ser que imaginem ter pouco tempo pela frente e não estejam dispostos ao custo emocional dos limites. Adequado supor que se sintam um pouco culpados pela opressão sobre os pais dos netos. Talvez, enfim, a experiência os tenha afastado de molduras estreitas. Avós são um calmo estuário para se refugiar das águas rápidas e mais jovens das marés paternas e maternas. Ser avô e ser avó é uma segunda chance, um doutorado, uma oportunidade de reescrever o rascunho da juventude. - Karnal, dia dos avós, 26 de julho de 2017

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