A morte de duas mulheres

Hoje eu estou especialmente sensível. Hoje eu lembro de livros, relatos que li, e sinto saudade de quando eu sofria mas só pela ideia do quer que tenha acontecido neles.

Ano passado eu perdi uma pessoa pra violência. Um menino negro que eu conheço desde que nasceu. Não merecia morrer e nem mereceu o descaso da "justiça" sobre a não investigação de seu assassinato.
Eu venho gritado desde 2013 sobre mortes de pessoas que eu não conheço, mas quando aconteceu com alguém muito próximo, as coisas começaram a se tornar cada vez mais reais e assustadoras.
Mês passado se tornou legal o extermínio dessas mesmas pessoas, que são meu vizinhos, são meus amigos, são meus colegas... no Rio de Janeiro. Em busca de uma "segurança" (leia-se distração da classe média), essas pessoas morrem e matam a rodo, como sempre, mas agora com permissão legal. Porque o militarismo dá essa permissão. De ser tão criminoso quanto quem você acredita quem estão matando, mas com o poder de dizer que estava cumprindo ordens.


Estamos bem no meio dessa guerrilha. Nós, mulheres.

Somos nós que ficamos morrendo de medo por corpos maiores, pelas armas que eles portam, pela maneira como se movem, e como isso significa que eles pensam que o mundo é deles.

Não só homens, homens com poder de nos aniquilar quando querem.

Não só aqueles que permitimos em nossa vida, não só aqueles que são família e que não temos qualquer escolha. Mas qualquer um. Qualquer um que baixe um vidro numa rua e descarregue sua arma em nós, ou que pule o muro de nossas casas e nos mate a pauladas.

Sinceridade, o dia ontem foi esquisito porque mesmo eu nunca tendo o costume de ver TV eu me deparo com uma notícia de uma artista plástica morta. Ali, no Varadouro. Suspeita de latrocínio. Ela, uma das criadoras do Acho É Pouco. Participante ativa da vida artística, a vida carnavalesca e da segurança do lugar onde mora. Uma senhora  de 72 que ajudou a transformar os horrores da ditadura militar em arte, alegria, folia. Seu nome é Maria Alice Soares dos Anjos.
A Baixinha.

Leia sobre a história do Bloco Eu Acho É Pouco.

Mais ainda, bem tarde da noite uma notícia que conseguiu ser mais perturbadora que uma do lado de casa. Uma mulher, negra, que tinha voz e a frente dos movimentos negros no Rio de Janeiro foi assassinada com nove tiros. NOVE. Nem tentaram fazer parecer assalto. Aquela que favelada, se formou e tinha título, voz, possibilidades. Mataram seus sonhos, por que incomodou quem quer o direito de matar. O direito à selvageria, mas só no lugar dela, da favela. Se você alcança voz pra dizer que eles matam preto e pobre a troco de nada, o que você ganha? Uma bala. Uma não, nove, pra avisar que de onde vem tem mais. Seu nome é Marielle Franca.

Formada em sociologia pela PUC-Rio, ela tinha mestrado em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Sua dissertação teve como tema “UPP: a redução da favela a três letras”. Marielle também coordenou a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), ao lado do deputado estadual Marcelo Freixo, também do PSOL.
Leia sobre o trabalho da socióloga, deputada e ativista, nessa nova fase da ditadura.

E lhe pergunto, uma mulher escolarizada, com condições financeiras, sem conexão com crimes. Qual a desculpa que vão dar, pra matar uma mulher preta dentro de um carro, sem levar nada?! Latrocínio. Um crime, que diferente do citado acima, se diferencia pelo fato de ter sido arma de fogo usada por alguém experiente. O suficiente pra mandar um recado.



Duas situações insustentáveis. Porque polícia, se não nos serve, só nos prejudica?!

De um lado, Pernambuco, assim como o país inteiro, vive as consequências de uma "segurança pública" filha e herdeira da ditadura militar, a mesma que matava pretos por quererem direito à vida, a mesma que matava artistas por dizer o que pensam, a mesma que impedia o ir e vir das pessoas em nome do poder. Poder de quem já estava no posto, não do povo. Poder de quem já estava no topo.

Você policial, queria ser polícia pois era o único meio de obter poder?!

Apanhar de polícia não é nada, baculejo não é nada, ser sacrificado como um carneiro aos deuses do dinheiro não é nada. E por isso vocês fecham os olhos. "Outro preto morto, o que você tem a ver não é? Provavelmente vendia drogas. Ah, é mulher? Foi vítima de assalto... a que anda o Rio de Janeiro não é?! Vai ter protesto pra morte da preta? Mas pra polícia não faz né? Ah, fazem?! 'A polícia que mais mata é também a que mais morre'... Mas, mas... ESSSES COMUNISTAS DE MERDA ficam chorando aí, vai pra Cuba ver o que é ditadura, chega de mimimi, vê quantos cariocas morrem todos os dias... mimimi mimimi mimimi".
Eu li um dia desses que as pessoas naturalmente tentam seguir uma linha de raciocínio, ser coerente.
Chego à conclusão de que algumas pessoas não são pessoas, diante dessa conjuntura. Não existe coerência quando se chega a um debate sobre pobres matando pobres, apenas para manter a estrutura de quem mais morre.

É esse sistema que mata tanto a minha família quanto os meus amigos, dois lados opostos, mas igualmente desamparados. Eu diria que pelo Estado, mas a verdade é que o Estado que estamos não só não quer amparar, não foi estruturado pra isso, quanto QUER NOS MATAR. Quanto mais preto, pobre, bicha morrer pra eles, melhor.

É por isso que investigação é coisa de CSI. É ficção. Evitar uma outra Comissão da Verdade? Pra que? Eles foram absolvidos mesmo. Marielle e Maria Alice são provas que não é a verdade que separa a barbárie, é o poder; Então o que faremos pra conseguir esse poder que eles tem?

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