Maio terminou
Estamos em junho, finalmente. Tudo o que passei esse mês provavelmente, e felizmente, será esquecido quando as minhas atividades voltarem ao normal. A minha crise pessoal, espero que tenha acabado. Mas tem uma que "começou" em maio, e que eu não quero que termine.
Quero e não quero ao mesmo tempo, melhor dizendo. A verdade é que eu sei que o meu estado não melhora em nada, quanto mais eu vejo casos de estupro, abuso,culpabilização da vítima, machismo sendo revelados nas timelines de todas as redes sociais. E olha, que nesse meio tempo eu tenho me protegido ao máximo, deixei de usar a maioria das contas, deixei grupos e de seguir diversas pessoas que fazem a realidade ser ainda pior do que ela já é.
Nesse meio tempo parei de fazer e ver diversas das coisas que normalmente me faziam esquecer que a nossa sociedade é realmente meio bosta, e que as coisas mais terríveis são também as mais comuns. A verdade é que quando algo chocante acontece, e todos ficam tentando desesperadamente achar justificativas, meios, diagnósticos, ou só repetindo discursos vazios e que nem param um momento pra pensar no que estão dizendo, para tentar tapar o sol com uma peneira de "lógica", ou "racionalidade" pra algo que não tem nada a se pensar, mas sim a se sentir, sentir empatia, sentir que as coisas precisam ser mudadas, sentir que o mundo precisa evoluir pra um nível mais humano.
Vou dizer, dói muito pessoas ver e ler pessoas que eu sei que fazem piada com estupro, e que eu sei disso porque fazem do meu lado, que eu sei que só se importam com mulheres se elas forem da família, e às vezes nem isso, falando merda (e não vou nem poupar palavras que eu normalmente não usaria em um texto, porque é uma merda mesmo, e às vezes palavras desse tipo são a única coisa que você pode dizer para qualificar algumas coisas), fazendo palanque pra suas próprias convicções imbecis e escrotas, sem ao menos pensar duas vezes ao usar a dor de milhares de pessoas, sem se por no lugar delas, sem sentir empatia, ou compaixão, sem sentir nem ao menos pena, sem sentir porra nenhuma, mas usando um caso entre muitos pra justificar outras merdas. Apenas outros preconceitos, outras noções erradas do que é a vida, de como o machismo funciona, de como essa base da pirâmide deveria se comportar para que "não sofra mais".
Ah, e as "investigações das causas". É pra querer morrer mesmo. Nessas horas eu compreendo porque eu tenho crises de depressão de tempos em tempos.
Nem é querendo me isentar da culpa. A culpa vive comigo como uma malha fina, envolvendo todo o meu corpo. De todas as vezes que eu escutei uma piada sobre estupro e fiquei parada, apenas sentindo, mas sem fazer nada de válido para que aquilo não fosse o natural, o normal nessa sociedade doente. E todas esses sentimentos de revolta, nojo, indignação, raiva, todo tipo de sentimento ruim, compactado como diversos papeis, diversos casos escritos de como a vida não é nem um pouco parecida com o que idealizamos quando dizemos a torto e à direita "não tenham medo!, sigam a sua vida sendo pessoas boas e nada de mal acontecerá!", todos os casos abertos, todas essas fichas de acontecimentos vis numa grande bola de papel revestida de desesperança e tristeza por esses seres que se dizem humanos, mas não conseguem enxergar nem mesmo a desumanização de alguém inocente sem julgar e vomitar todo tipo de maldade.
Minha culpa por sentir e não expressar, minha culpa por viver pra tentar esquecer, minha culpa por não gritar todos os dias, e todas as horas, e todo o tempo que me resta nessa vida insignificante, que a vida e o corpo de outros milhares de seres iguais a mim estão sendo maltratados e ainda mais, mal vistos pelo o que quer o que os aconteça; minha culpa porque sinto que as coisas mínimas que faço não curam, embora ajudem a construir um futuro que ainda parece muito longínquo, mas não mudam os milhares de passados, de histórias de vítimas. De conhecidas, de amigas, de familiares, de desconhecidas, a minha própria, e da desesperadora noção de que a violência não está longe o suficiente da minha filha.
Porque se apegar à realidade é saber que eu não poderei protegê-la sempre, e que as probabilidades estão dando desvantagens para nós, mulheres, mulheres trans, travestis, "viados", "bichas", "afeminados", todos aqueles que não fazem parte do topo da pirâmide. São eles, homens, heteros, cis... todos aqueles que se acham no direito de impor sua vontade a todos os corpos que se diferenciem do seu. Que não sabem o valor do respeito, porque nunca tiveram que lutar por eles, nem minimamente sofrer por não tê-lo.
Sinto culpa por tentar me adaptar a tudo o que está errado nesse sistema social; sinto culpa ao ver filmes, anime, séries, vídeos no youtube, ler livros, mangás, contos, e quase todos eles tem um pouco do que mais me afasta das pessoas, porque toda a cagação de regra sobre o que é certo e errado, o que é masculino e o que é feminino, o que precisamos e o que não precisamos, são também impressos em todas as obras, literárias ou audiovisuais, noticiários ou novelas, fato ou ficção, todas as coisas que consumo pra tentar esquecer que sofro, e que me fazem sofrer ainda mais porque não posso modificar a realidade nem mesmo em mundos imaginários.
No final, minha tristeza se intensifica com as discussões sobre a cultura do estupro, mas sei que me entristecia mais ainda quando nada disso era discutido, e que o meu sofrimento não era compartilhado, e que a conexão com outras vítimas era feito raramente e sempre com sussurros por medo.
E não nos enganemos, o medo é exatamente o que faz com que as coisas não evoluam. O silêncio é a pior e a mais perversa arma que nos direcionam. O medo e a sensação de que não podemos fazer nada.
Então lutemos, pelo direito de gritar que não somos corpos sem alma e disponíveis para serem usados.
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